O acesso à justiça surgiu timidamente na história, acolhido de forma mais evidente pela declaração universal de direitos do homem e, após um longo processo de evolução política e jurídica do Estado moderno, o conceito teórico de acesso à justiça atinge à contemporaneidade configurada como um direito fundamental em praticamente todas as constituições dos países ocidentais. Contudo, a análise da gênese, evolução e efetivação (aplicabilidade) deste direito de cidadania básico, não se revela tarefa fácil.
A justiça, como direito público essencial, não tem sido alcançada por todos, apesar dos grandes avanços acerca desta garantia, o que gera um sentimento de angústia e insatisfação por parte daqueles que dela necessitam e não encontram meios (concretos) de exercitar o “direito ao direito”.
Na sociedade brasileira há um descompasso nítido entre as necessidades da comunidade, cada vez mais complexas, e a qualidade das respostas do Judiciário, à medida que não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, mas também de ser viável, no plano efetivo e para todos os cidadãos, principalmente para os carentes, o acesso à ordem jurídica justa.
Ora, o acesso à justiça, e isso não pode ser ignorado, é um direito humano básico, implicado com a ordem normativa de valores e direitos fundamentais para o ser humano que vive sob a égide de um Estado de Direito, revelando-se como a principal garantia dos direitos subjetivos, itinerário essencial para a proteção da cidadania e da consolidação da própria democracia.
Como termômetro desta análise, a reflexão em torno do tema tem ganhado força e atingido significados densos se considerado o Movimento pelo Acesso à Justiça, cujo teor e expressão revelam, em sua base, as necessidades imperiosas da radical transformação do próprio pensamento jurídico, das reformas normativas e institucionais, em seus aspectos pragmáticos e culturais.
Esse dinâmico fenômeno chamado Movimento pelo acesso à justiça, é reflexivamente tratado por grandes autoridades sobre o assunto, à exemplo das lições registradas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth no clássico italiano Acesso à Justiça publicado no Brasil pela editora Sergio de Antônio Fabris, cujo enforque objetiva romper com a rigidez do formalismo interpretativo, que tem como critério básico o positivismo, a fim de reconhecer e assegurar a amplitude do direito à justiça, numa concepção mais afastada da abstração e frieza da letra da lei.
Para a consolidação da democracia e do valor da dignidade da pessoa humana, faz-se necessário, para o processo de formação do futuro intérprete do direito, especialmente ao advogado, o respeito pela justiça em detrimento do tecnicismo. Tal inserção teórico-metodológica contribuirá, gradativamente mas de maneira continuada, com a esperada e impreterível mudança na forma de o legislador, operador e/ou aplicador, relacionar-se com o sistema jurídico, fazendo valer o direito atingido do cidadão, independente da sua condição econômica ou, ao reverso, com mais zelo se percebê-lo fragilizado do ponto de vista material.
Por isso o desafio de implementar essa harmonia quando presente a desigualdade social, fonte de injustiça na contemporaneidade, que estigmatiza de outro lado, na pobreza e na diversidade de oportunidades, fontes, que atacam direitos e impedem, de igual forma, o acesso aos direitos, ensejando por consequencia em prejuízo ao ideário de justiça fundado na equidade e no próprio destino da sociedade.
A cidadania não se limita a um conceito monolítico, tecido na matéria única de direitos e deveres políticos de votar e ser votado. Sua finalidade e feixe de significados implicam compreendê-la de forma ampla, dinâmica e em constante aprimoramento; ela está ligada ao exercício da solidariedade e, por exemplo, à participação dos indivíduos, inclusive, na elaboração de novos direitos, no encalço da plenitude humana, na erradicação da própria desigualdade, conforme narra o Preâmbulo da Constituição brasileira. Portanto, frisa-se, é preciso participação de todos os atores sociais, pois tal missão não depende somente do Estado.
A temática “acesso à justiça” pode e deve ser alvo de reflexões profundas e se interliga a diversos ramos do conhecimento humano. E nessa seara, a própria administração da justiça, possui maior responsabilidade, pois muitos dos problemas hoje conhecidos manifestam a existência de uma crise do sistema estatal, em seus aspectos estruturais e formais. Ora, esta crise se revela como sintoma de problemas também derivados das óbvias limitações ao acesso à justiça, as quais devem ser, impreterivelmente, superadas para o bem e garantia dos direitos fundamentais do Estado brasileiro.
Exemplo disso é a recorrente discussão sobre quais as formas de se combater a morosidade da justiça e seus efeitos devastadores, que maculam e minam a credibilidade do cidadão no que toca ao seu direito atingido ou ferido. Apesar de algumas reformas já implementadas (por exemplo a Reforma do Judiciário com a Emenda Constitucional nº. 45/2004), bem como outras em andamento, na prática poucos são os resultados verificáveis e, em razão disso, a indignação continua a alimentar a desesperança daqueles que precisam se valer do (longo) processo extenuante para obtenção da justiça.
Muito embora a Constituição da República esteja bem aparelhada em relação a princípios e garantias, no plano da abstração suficientes para a resolução do acesso à justiça, na prática cotidiana, os problemas enfrentados pelos cidadãos carentes, principalmente, desconhecem a efetividade substancial, e muitos ficam sem solução, à mercê da perda do exercício do “direito ao direito”. Exemplo disso, é o caso da ausência de regulamentação da Defensoria Pública no Estado do Paraná e Santa Catarina. Apesar de não ser a solução, esse suporte decorrente da responsabilidade do Estado em prestar assistência jurídica gratuita aos necessitados comprovadamente, de acordo com o Art. 134 da Constituição Federal, poderia ser prestada Defensoria Pública, cuja incumbência é atuar no sentido de prestar orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, na forma do Art. 5º, LXXIV da Carta Maior.
É de extrema necessidade que a nação empenhe-se para a reforma dos serviços judiciários e para o aperfeiçoamento de seus operadores em todos os níveis, quer para solucionar contenciosamente os conflitos ou para estimular a busca de soluções consensuais alternativas. O entendimento doutrinário é uniforme, no sentido de que sem o aprimoramento daqueles que irão manejar os instrumentos jurídicos, toda reforma da lei processual será impotente para superar os problemas de insatisfação social, gerados pela deficiência do Poder Judiciário.
Para isso, não se pode perder a consciência de que a história é luta permanente do homem na consecução de um mundo melhor. Cada geração deve oferecer a sua parte de abnegação para um avanço na persecução de melhores metas e condições. Dessa forma, diante de tantos despossuídos e negligenciados pelo sistema estatal, responsável pelo acesso à justiça, nós, juristas devemos participar desta luta, pois essa é a obrigação, cuidar do justo e zelar pela justiça, através da produção de alternativas de aperfeiçoamento e da garantia efetiva do “direito ao direito” em benefício de todos os membros da sociedade.
É hora de se fazer valer a efetividade e instrumentalidade do acesso à justiça para tornar realidade a vontade política proclamada na Carta Magna, asseguradora da paz social e do valor justiça. Estado, sociedade civil organizada e operadores do direito (dentre estes os advogados) devem se unir para a construção de uma ordem social justa e que, nessa direção, perpassa, necessariamente, pelo direito ao acesso, saudável e efetivo, à justiça para todos os cidadãos brasileiros, sem exceção.
Eliezer Machado de Almeida