terça-feira, 7 de julho de 2015

ARTIGOS DOS MEMBROS DO NÚCLEO: "O superendividamento do consumidor bancário"

Não se pode negar que o crédito é indispensável na sociedade de consumo, pois possibilita a inserção das classes menos favorecidas no tecido social, tanto que diversos programas foram lançados a fim de facilitar o acesso ao crédito, como o crédito consignado e os programas de crédito habitacional. Clóvis V. do Couto e Silva, por exemplo, considera os contratos de crédito como “absolutamente necessários à vida humana”[1] 

A partir de meados da década de 90, o consumo ficou cada vez mais intenso e o crédito passou ser considerado como elementar, a ponto das instituições financeiras aproveitarem desse paradoxo para anunciá-lo incisivamente na mídia, em especial nos intervalos dos programas televisivos.

Infelizmente, muitas vezes essa oferta de crédito se vale da vulnerabilidade do consumidor, em clara violação aos princípios caros à relação de consumo, em especial o da boa-fé objetiva e da informação clara e precisa, ao não apresentar todas as advertências necessárias acerca do crédito ofertado e seus riscos.

Em verdade, o crédito aos consumidores faz parte da realidade das economias mais desenvolvidas e chega a constituir uma forma de gestão do orçamento familiar. O seu consumo, portanto, possui a função de satisfação de necessidades e realização pessoal, além de permitir “a criação de novas identidades culturais e novas oportunidades de participação social”[2] e, quando contratado em um cenário de estabilidade financeira e laboral, contribui para o bem-estar dos indivíduos, pois possibilita o acesso a bens e serviços.

No entanto, o risco de sobrevir um acontecimento na vida de um devedor é uma constante e, quando presente, o superendividamento torna-se praticamente inevitável. De fato, este fenômeno faz parte da realidade de diversos países, inclusive dos mais desenvolvidos. Atualmente, aproximadamente 40% da população brasileira encontra-se endividada[3].

No Brasil, Cláudia Lima Marques[4] conceitua o superendividamento como sendo “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e alimentos)”.

Importante destacar, ainda, que a doutrina europeia distingue o superendividamento passivo do superendividamento ativo. No primeiro caso, o consumidor não contribui ativamente para o surgimento da crise de insolvência, muitas vezes decorrente de algum acidente da vida, como o desemprego, redução de salário, morte de parentes, doença de familiares e divórcio.

O superendividamento ativo, por sua vez, é aquele decorrente do consumo excessivo de crédito, isto é, “quando o consumidor abusa do crédito e ‘consome’ demasiadamente acima das possibilidades de seu orçamento, sendo que, mesmo em condições normais, não teria como fazer face às dívidas assumidas”. [5] 

Em pesquisa realizada por Cláudia Lima Marques a fim de formar um perfil do consumidor superendividado brasileiro, constatou-se que 70% dos casos analisados são de superendividamento passivo, sendo que em 74% dos consumidores devem para no máximo três credores, o que, sem sombra de dúvidas, “facilitaria uma renegociação com os credores, se chamados para negociar de boa-fé pelo Estado”. [6] 

Ademais, o superendividamento afeta profundamente a autoestima e a confiança do indivíduo em sua capacidade de gerir e controlar sua vida pessoal e familiar, além de agravar a sua condição físico-psíquica e de seus familiares e contribuir para o isolamento, ou até mesmo, exclusão social desse consumidor.[7] 

Soma-se a isso o fato de a explosão do endividamento, caso não seja controlada, influenciar as taxas de juros, os spreads e os riscos bancários[8], causando um comprometimento sistêmico da economia e, consequentemente, do desenvolvimento do país.

Assim, uma forma de, se não evitar, mas ao menos de reduzir a ocorrência do superendividamento dos consumidores, é a observância por parte daqueles que ofertam o crédito dos deveres anexos à boa-fé, como o dever de veracidade e lealdade, isto é, deve o fornecedor do crédito informar ao consumidor de maneira completa, adequada, precisa e por escrito, todas as características e detalhes do crédito contratado.

Desta forma, em que pese o direito brasileiro ainda carecer de legislação específica para tratar o problema do superendividamento, diversas medidas podem ser adotadas a fim de preveni-lo, sendo que muitas delas já se encontram previstas no Código de Defesa do Consumidor, como o dever de transparência, previsto no caput do art. 4º, a ativa proteção do consumidor com base na boa-fé de condutas (art. 4ª, inc. III e art. 51, inc. IV e §1º) e a interpretação dos contratos conforme a confiança despertada (arts. 30, 34, 35, 47 e 48).

Ademais, não se pode olvidar que os credores, em especial as instituições financeiras, devem cooperar e renegociar os contratos, a fim de atender ao princípio da boa-fé objetiva.

A esse respeito, interessante é a solução adotada pela legislação francesa[9], que concede ao consumidor-devedor de boa-fé a possibilidade de elaboração de um plano para a sua recuperação extrajudicial, do qual participarão não apenas os credores e o devedor, mas também uma comissão formada por representantes do Estado no departamento francês, tesoureiro geral, representante local da Banque de France, representante indicado pela associação dos estabelecimentos de crédito, representante de associações familiares e de consumidores, jurista e um consultor econômico, social e familiar, além de ser supervisionado pelo magistrado.

No Brasil, porém, ainda se encontra em trâmite no Sanado Federal o Projeto de Lei n. 283/2012 [10], que busca aperfeiçoar a disciplina do crédito e prevenir o superendividamento, além de promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira e, assim, evitar a exclusão social e o comprometimento do mínimo existencial do consumidor.

Deste modo, verifica-se que o superendividamento é um fenômeno social e jurídico que necessita de premente solução, seja por meio de parcelamentos, dilação de prazos, redução de taxas e juros, seja através do controle da publicidade eda possibilidade de exercício do direito de arrependimento, a fim de evitar a exclusão social do consumidor superendividado.

Enfim, tratar o superendividamento, além de ser fundamental na luta contra as exclusões sociais, é garantir ao consumidor o mínimo necessário à sua sobrevivência e, desta forma, atender ao princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido na Constituição Federal nos arts. 1º, inc. III; 3º, inc. I e art. 170, inc. V, bem como nos arts. 1º e 4º, inc. III do Código de Defesa do Consumidor.


Referências:
[1] SILVA apud CASADO, Márcio Mello. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. In: BENJAMIN, Antonio Herman (diretor). Biblioteca de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v.15, p.92.
[2] CROSS apud FRADE, Catarina; MAGALHÃES, Sandra. Sobreendividamento, a outra face do crédito. In: MARQUES, Cláudia Lima. CAVALLAZZI; Rosângela Lunardelli (Coord), p. 24.
[3]CONSTANTINO, Rodrigo. Mais de 50 milhões de brasileiros devem e não conseguem pagar, e governo quer estimular mais crédito ainda! Veja. Disponível em: Acesso em: 21 ago.2014.
[4] MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima. CAVALLAZZI; Rosângela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 256.
[5]MARQUES, 2006, op. cit., p. 258.
[6]Ibid. p. 302.
[7]FRADE; MAGALHÃES, op. cit., p. 42,
[8]ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.576.
[10] Brasil. Projeto de Lei do Senado n. 283 de 2012. Altera a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=112479&tp=1>. Acesso em: 06 jul.2015.
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 Dra. Marília Barros Breda – Advogada - OAB/PR nº. 57.936 - Membro do Núcleo OAB Jovem de Londrina

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