Nos últimos anos, muito se tem discutido acerca do aumento dos casos
registrados de violência e morte de mulheres por seus cônjuges, companheiros e familiares
no âmbito doméstico.
A Lei n° 11.340 de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da
Penha foi criada justamente para ampliar a proteção às mulheres vítimas de
situação de violência em razão de seu gênero, com o objetivo de criar
mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar praticada
contra as mulheres.
Ocorre que, com quase nove anos de vigência da Lei, os resultados
esperados de diminuição da violência contra a mulher ainda são muito
inexpressivos. Dados recentes publicados pelo
Instituto Avante Brasil[1]
estimam que a cada duas horas uma mulher seja morta no Brasil.
Historicamente, estamos inseridos em uma sociedade
patriarcal que ainda preserva e incentiva comportamentos machistas, criando um
abismo entre o discurso legislativo de proteção às mulheres e a realidade da
prática institucionalizada da misoginia, que permeia desde as relações laborais
até o próprio convívio familiar.
É inegável que as relações sociais modernas ainda
conservam uma posição de hierarquia entre homens e mulheres, no qual as
mulheres são subjugadas e ocupam uma posição de inferioridade.
O fortalecimento do movimento feminista vem
contribuindo para alterar essa realidade. O discurso do empoderamento e da
emancipação feminina combate justamente essas relações desproporcionais de
poder que envolvem as relações entre gênero.
Apesar dos grandes avanços sociais das mulheres, a necessidade de sua
proteção persiste.
Com base nessa mobilização da sociedade, foi aprovada a Lei n° 13.104/15
que alterou o art. 121 do Código Penal, adicionando a figura do feminicídio como
uma nova modalidade de qualificadora no crime de homicídio.
O feminicídio se configura quando o homicídio for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo
feminino. A medida majora a pena do crime quando ele envolver violência doméstica e familiar, ou ainda
menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Além da qualificadora, o
texto legal traz ainda o feminicídio como uma causa de aumento de pena, que
majora a pena de 1/3 até a metade, quando este for praticado durante a gestação ou nos 3 (três) meses
posteriores ao parto; contra a pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60
(sessenta) anos ou com deficiência; ou ainda na presença de descendente ou de
ascendente da vítima.
Em termos legais, a Lei do feminicídio não traz nenhuma inovação
legislativa, já que os casos de violência contra a mulher já estavam sendo
enquadrados nas qualificadoras existentes no crime de homicídio, caracterizando-se,
por este motivo, em crime hediondo.
Entretanto, é inegável observar que a criminalização do feminicídio tem
um importante caráter simbólico e traz luz a situação de violência contra a
mulher e a emergência de se combater esse tipo de violência tão enraizado na
sociedade moderna, tanto do Brasil quanto do mundo.
Se por um lado, a nomeação desse fenômeno tem um caráter informativo e
educativo, é importante refletirmos acerca das implicações de nos voltarmos ao
direito penal e ao endurecimento das punições como medida para suprir a falta
de atuação do Estado na elaboração de políticas públicas efetivas no combate da
violência contra a mulher.
Em que pese o importante caráter simbólico da medida, estamos
vivenciando um expansionismo do direito penal, no qual a sociedade se vale do
recrudescimento das punições como medida de alcançaruma diminuição da
delinquência, como se essa fosse a única alternativa de ação do Estado capaz de
conter os altos e crescentes índices de criminalidade.
A recente proposta de diminuição da maioridade penal e a aprovação da
qualificadora que aumenta a pena do crime praticado contra autoridade ou agente descrito
nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e
da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em
decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo
até terceiro grau, em razão dessa condição, incluída pela Lei n° 13.142, de 2015, são dois exemplos desse
expansionismo.
A falência do Estado é evidenciada na ausência do
acesso aos serviços de assistência e da estruturação da
rede de apoio às mulheres na grande maioria dos municípios brasileiros,
tornando o cumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha
inacessíveis e ineficientes.
Assim, observamos a proliferação dos tipos penais
como resposta imediata dos legisladores ao clamor da sociedade em endurecer o
combate à criminalidade, no qual se busca uma proteção mais ampla dos bens
jurídicos e uma rigidez na aplicação das penas e no tempo de encarceramento.
Sobre essa ótica, o direito penal perde o seu caráter
de fragmentariedade e subsidiariedade que lhe é característico, servindo como
instrumento de proselitismo político, apresentado na sociedade midiática como o
grande salvador da crise institucionalizada de valores morais, éticos, de
respeito ao próximo e principalmente no respeito à dignidade da pessoa humana e
no respeito à vida.
A falta de uma visão sistêmica e integrada do
ordenamento jurídico combinada com a sede de justiça que emana na população são
o cenário perfeito para a elaboração dessa política criminal de emergência com
foco nas consequências e que ignora as causas da criminalidade.
Dessa forma, o aumento do rigor punitivo passa a ser
o principal foco do direito penal, que deixa de buscar o elemento
ressocializador da pena e passa a objetivar a punição com base na vingança.
Com isso, a criminalização do feminicídio pode ser
interpretada como mais uma resposta de ampliação da tutela penal frente à
falência da elaboração de políticas públicas de enfrentamento da violência, servindo
como atalho na elaboração de medidas de fato protetivas às mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar.
Assim, resta à sociedade e a comunidade jurídica
sobrepesar sea criminalização do feminicídio é positiva, já que traz
visibilidade sobre a caótica situação que envolve a violência contra a mulher,
servindo como elemento de conscientização a respeito da mortalidade feminina ou
se a criação dessa nova figura acaba por perpetuar esse movimento de
expansionismo penal servindo como medida paliativa de uma sociedade que não
investe em políticas públicas voltadas para a educação e emancipação social,
pautando a criação de sua política criminal em situações emergenciais que
ignoram a criação de mecanismos de prevenção e repressão prévios da violência
de gênero.
Referências:
[1] Bianchini, Alice; Gomes, Luiz Fávio.
Uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil. Disponível em <http://institutoavantebrasil.com.br/uma-mulher-e-morta-a-cada-hora-no-brasil/>. Acessado em 14 de jul de 2015.
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Dra. Vanessa
Armeni de Paula Machado - Advogada - OAB/PR
Nº 73.064 - Membro do Núcleo OAB Jovem de Londrina
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