terça-feira, 21 de julho de 2015

ARTIGOS DOS MEMBROS DO NÚCLEO: "Reflexões sobre o feminicídio"

Nos últimos anos, muito se tem discutido acerca do aumento dos casos registrados de violência e morte de mulheres por seus cônjuges, companheiros e familiares no âmbito doméstico.

A Lei n° 11.340 de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha foi criada justamente para ampliar a proteção às mulheres vítimas de situação de violência em razão de seu gênero, com o objetivo de criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar praticada contra as mulheres.

Ocorre que, com quase nove anos de vigência da Lei, os resultados esperados de diminuição da violência contra a mulher ainda são muito inexpressivos. Dados recentes publicados pelo Instituto Avante Brasil[1] estimam que a cada duas horas uma mulher seja morta no Brasil.

Historicamente, estamos inseridos em uma sociedade patriarcal que ainda preserva e incentiva comportamentos machistas, criando um abismo entre o discurso legislativo de proteção às mulheres e a realidade da prática institucionalizada da misoginia, que permeia desde as relações laborais até o próprio convívio familiar.

É inegável que as relações sociais modernas ainda conservam uma posição de hierarquia entre homens e mulheres, no qual as mulheres são subjugadas e ocupam uma posição de inferioridade.

O fortalecimento do movimento feminista vem contribuindo para alterar essa realidade. O discurso do empoderamento e da emancipação feminina combate justamente essas relações desproporcionais de poder que envolvem as relações entre gênero.

Apesar dos grandes avanços sociais das mulheres, a necessidade de sua proteção persiste.

Com base nessa mobilização da sociedade, foi aprovada a Lei n° 13.104/15 que alterou o art. 121 do Código Penal, adicionando a figura do feminicídio como uma nova modalidade de qualificadora no crime de homicídio.

O feminicídio se configura quando o homicídio for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. A medida majora a pena do crime quando ele envolver violência doméstica e familiar, ou ainda menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Além da qualificadora, o texto legal traz ainda o feminicídio como uma causa de aumento de pena, que majora a pena de 1/3 até a metade, quando este for praticado durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; contra a pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; ou ainda na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Em termos legais, a Lei do feminicídio não traz nenhuma inovação legislativa, já que os casos de violência contra a mulher já estavam sendo enquadrados nas qualificadoras existentes no crime de homicídio, caracterizando-se, por este motivo, em crime hediondo.

Entretanto, é inegável observar que a criminalização do feminicídio tem um importante caráter simbólico e traz luz a situação de violência contra a mulher e a emergência de se combater esse tipo de violência tão enraizado na sociedade moderna, tanto do Brasil quanto do mundo.

Se por um lado, a nomeação desse fenômeno tem um caráter informativo e educativo, é importante refletirmos acerca das implicações de nos voltarmos ao direito penal e ao endurecimento das punições como medida para suprir a falta de atuação do Estado na elaboração de políticas públicas efetivas no combate da violência contra a mulher.

Em que pese o importante caráter simbólico da medida, estamos vivenciando um expansionismo do direito penal, no qual a sociedade se vale do recrudescimento das punições como medida de alcançaruma diminuição da delinquência, como se essa fosse a única alternativa de ação do Estado capaz de conter os altos e crescentes índices de criminalidade.

A recente proposta de diminuição da maioridade penal e a aprovação da qualificadora que aumenta a pena do crime praticado contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, incluída pela Lei n° 13.142, de 2015, são dois exemplos desse expansionismo.

A falência do Estado é evidenciada na ausência do acesso aos serviços de assistência e da estruturação da rede de apoio às mulheres na grande maioria dos municípios brasileiros, tornando o cumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha inacessíveis e ineficientes.

Assim, observamos a proliferação dos tipos penais como resposta imediata dos legisladores ao clamor da sociedade em endurecer o combate à criminalidade, no qual se busca uma proteção mais ampla dos bens jurídicos e uma rigidez na aplicação das penas e no tempo de encarceramento.

Sobre essa ótica, o direito penal perde o seu caráter de fragmentariedade e subsidiariedade que lhe é característico, servindo como instrumento de proselitismo político, apresentado na sociedade midiática como o grande salvador da crise institucionalizada de valores morais, éticos, de respeito ao próximo e principalmente no respeito à dignidade da pessoa humana e no respeito à vida.

A falta de uma visão sistêmica e integrada do ordenamento jurídico combinada com a sede de justiça que emana na população são o cenário perfeito para a elaboração dessa política criminal de emergência com foco nas consequências e que ignora as causas da criminalidade.

Dessa forma, o aumento do rigor punitivo passa a ser o principal foco do direito penal, que deixa de buscar o elemento ressocializador da pena e passa a objetivar a punição com base na vingança.

Com isso, a criminalização do feminicídio pode ser interpretada como mais uma resposta de ampliação da tutela penal frente à falência da elaboração de políticas públicas de enfrentamento da violência, servindo como atalho na elaboração de medidas de fato protetivas às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

Assim, resta à sociedade e a comunidade jurídica sobrepesar sea criminalização do feminicídio é positiva, já que traz visibilidade sobre a caótica situação que envolve a violência contra a mulher, servindo como elemento de conscientização a respeito da mortalidade feminina ou se a criação dessa nova figura acaba por perpetuar esse movimento de expansionismo penal servindo como medida paliativa de uma sociedade que não investe em políticas públicas voltadas para a educação e emancipação social, pautando a criação de sua política criminal em situações emergenciais que ignoram a criação de mecanismos de prevenção e repressão prévios da violência de gênero.
 

Referências:

[1] Bianchini, Alice; Gomes, Luiz Fávio. Uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil. Disponível em <http://institutoavantebrasil.com.br/uma-mulher-e-morta-a-cada-hora-no-brasil/>. Acessado em 14 de jul de 2015.
__________________________________________________________
Dra. Vanessa Armeni de Paula Machado - Advogada -  OAB/PR Nº 73.064 - Membro do Núcleo OAB Jovem de Londrina

Nenhum comentário:

Postar um comentário