terça-feira, 14 de junho de 2016

A Incompatibilidade da Justiça Restaurativa nos Crimes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Na última década, a Justiça Restaurativa vem sendo gradativamente implementada no Brasil como uma forma alternativa na solução de conflitos, que visa mediar um conflito, seja ele de natureza civil ou criminal, a partir da conciliação entre as partes, a fim de se alcançar uma solução mais sensível e particularizada para determinado litígio ou infração, com o foco na reparação dos danos causados.
Nessa perspectiva, a prática da Justiça Restaurativa, em âmbito criminal, trata-se de um processo colaborativo entre as partes, de caráter extrajudicial, que pode ser adotada tanto antes da propositura da ação penal, como de forma concomitante, ou ainda posterior, em fase de cumprimento de pena.
A proposta dessa mediação, que pode ser realizada por profissionais de várias áreas, e não somente do direito, como por exemplo psicólogos e assistentes sociais, leva em conta a necessidade das partes, sejam elas vítimas e agressores, seus familiares ou ainda a sociedade.
Diante do crescente aumento das demandas judiciais no Brasil, a adoção de meios alternativos de solução de conflitos passa a ser um importante instrumento de resolução de conflitos sociais bem como serve como uma ferramenta legítima para desafogar o volume de processos no sistema judiciário, trazendo celeridade e eficiência no manejo dos conflitos, buscando um maior equilíbrio entre o ato praticado e a sua consequência.
A professora Soraia da Rosa Mendes destacou em artigo recente[1] um argumento importante acerca da promoção de um novo modelo de justiça:

Corriqueiramente, “os defensores das formas alternativas de resolução de conflitos pretendem promover um novo modelo de justiça, que permita à comunidade reapropriar-se da gestão dos conflitos, com a intervenção de não profissionais. Estes movimentos desenvolvem sobretudo experiências de mediação em matéria penal, de vizinhança e mesmo escolar e de família, com a formação de mediadores pertencentes a diferentes profissões ou comunidades. Ao lado do modelo adjudicatório ou retributivo tradicional, passa a existir um modelo de justiça negociada, de compensação, reparadora ou restaurativa, seja no processo de decisão ou na execução das penas”.[2]

Desse modo, é possível perceber que o judiciário caminha para o incentivo de projetos, processos e intervenções que envolvam uma maior participação popular na gestão dos conflitos.
Desde a sua implementação, a Justiça Restaurativa vem sendo muito utilizada para resolver conflitos de natureza escolar, envolvendo menores infratores ou ainda crimes de menor potencial ofensivo.
Isso não quer dizer que a Justiça Restaurativa não possa lidar com crimes mais graves, apenas reflete o seu estágio inicial de desenvolvimento no Brasil, além da falta de uma estrutura estatal apropriada e da escassez na formação de profissionais capacitados para a adoção de sua prática em maior escala.
Com esses dados é seguro dizer que a inovação na solução de conflitos proposta pela Justiça Restaurativa trata-se de um avanço no campo da resolução de conflitos e reparação de danos, possibilitando a concretização da função ressocializadora que o Estado se dispõe a obter através do sistema judicial punitivo, só que de forma mais democrática e autodeterminada, através da responsabilização individual, livre e autônoma do agressor.
Em que pese os inegáveis benefícios provenientes da propagação da cultura de paz que subsidia a ideia da Justiça Restaurativa, é importante observarmos a singularidade de cada ofensa submetida a seu procedimento.
No caso dos crimes de violência familiar e doméstica contra a mulher me parece incompatível conceber algum benefício para a vítima diante da prática restaurativa.
Ainda que uma possível mediação e conciliação entre as partes possa parecer positiva e, em última análise, servir como um bem à manutenção das relações familiares, a noção de um acordo firmado com a anuência da vítima de violência doméstica e familiar pode ser facilmente questionada, tanto do ponto de vista ético quanto legal, em razão da fragilidade psíquica, política, econômica, social e emocional da mulher vítima deste tipo de violência.
Nas situações de violência doméstica e familiar é comum que o agressor cometa uma série de atos perversos contra a sua vítima, que começam como agressões psicológicas reiteradas, reduzindo a vítima a um estado psicológico de submissão e subserviência, de verdadeira destruição emocional, no qual a vítima fica cada vez mais isolada e vulnerável as suas agressões, sejam elas físicas ou morais, de forma que ela perca o seu poder de resistência e abandono daquela condição.
Trata-se de uma forma de violência que prejudica toda a entidade familiar e que acaba se sustentando muitas vezes pelo discurso social da importância da preservação e manutenção da conjugalidade, que massivamente recai sobre a mulher.
Assim, com a constatação da dificuldade específica que envolve este crime, embasado pelas estatísticas amplamente divulgadas que demonstram tanto a incidência dos crimes de violência domiciliar e familiar contra a mulher bem como os dados acerca da dificuldade que as vítimas apresentam em registrar a queixa contra os seus agressores e seguirem adiante com os procedimentos judiciais, necessário se faz uma reflexão sobre a aplicabilidade da Justiça Restaurativa contra essa espécie de delito.
Com isso, diante dos pressupostos da Justiça Restaurativa, parece-me razoável afirmar que a prática restaurativa de resolução de conflitos é totalmente incompatível com os crimes de violência em âmbito familiar e doméstico cometidos contra a mulher.




[1]MENDES, Soraia da Rosa.  Justiça restaurativa e violência doméstica: yo no creo em brujas, pero que lashay, lashay... . Disponível em <http://emporiododireito.com.br/justica-restaurativa-e-violencia-domestica/>. Acessado em 13 de junho de 2016.
[2]AZEVEDO, Rodrigo Ghiringelli de. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Alternativas de Resolução de Conflitos e Justiça Restaurativa no Brasil. In: KHALED JR., Salah. Sistema Pena e Poder Punitivo: estudos em homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. Pp. 424- 437



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Vanessa Armeni de Paula Machado - OAB /PR 73.064
Coordenadora da Subcomissão de Apoio Filantrópico e Social
Membro do Núcleo OAB Jovem de Londrina

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