terça-feira, 4 de junho de 2013

ARTIGO DOS MEMBROS DO NÚCLEO: "O Exemplo do Judiciário nos tempos do Ato Institucional nº5"

A Constituição Federal de 1988 implantou no Brasil um regime democrático de Direito estável, fruto da independência e  harmonia dos três poderes que compõem a União. A autonomia entre os Poderes do Executivo, Legislativo e Judiciário trouxe a  segurança jurídica necessária paras as relações sociais.

Mas no caminho da conquista desse cenário, o Poder Legislativo foi humilhado e submetido a pressões insuportáveis, quando não, talhado pela suspensão de suas prerrogativas  fundamentais, sendo transformado em um Poder sem as mínimas condições de exercer as suas funções institucionais.

A justiça brasileira talvez tenha sido uma das instituições mais atingidas pelo processo autoritário, que se desenvolveu no final dos anos 60, com a instauração do Ato Institucional n°5. O AI5 foi o quinto de uma série de decretos emitidos pelo regime militar brasileiro, nos anos  seguintes ao Golpe militar de 1964.

O Poder Judiciário, a partir do AI5, passou a ter entre os seus membros magistrados escolhidos a dedo pelo sistema, nunca por seus méritos jurídicos, mas sim por estarem mais afinados e  flexíveis com a política, e que, acima de tudo, respaldassem  juridicamente o regime instaurado pelos militares. 

Diante desse contexto, em meio a um regime jurídico questionável, é que o presente artigo pretende, por meio de uma breve narrativa histórica, mostrar momentos de “indireitos” e  injustiças da história do Brasil, porém com enfoque especial nos  grandes fatos que envolvem o Poder Judiciário, quando as figuras de seus representantes fizeram o juramento de suas Togas falar  acima de todos os seus medos, exatamente nos anos mais  obscuros que antecederam à conquista da Constituição “cidadã”. 

A Constituição de 1967 entrou em vigor no dia 15 de março de 1967, sob pressão dos militares. Era uma Carta Constitucional semioutorgada, que buscava legalizar e institucionalizar o regime militar no Brasil, consequência da Revolução de 1964. Sua idéia central era de  aumentar a influência do Poder Executivo sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, criando, desta forma, uma hierarquia centralizadora. Tudo isso, ainda antes do AI5.

Nos dias 2 e 3 de setembro de 1968 o então Deputado  Márcio Moreira Alves fez um protesto contra o governo militar, questionando seu caráter abusivo e amplamente autoritário. Neste dia, fez também um apelo ao povo brasileiro, para que não participassem dos desfiles militares de 7 de Setembro, enfatizando inclusive, com certa ironia, que as moças ‘ardentes de liberdade’  se recusassem a sair com qualquer oficial militar.

Este foi o primeiro avante, em nome do Poder  Legislativo, contra as seguidas arbitrariedades e ilegalidades que  eram praticadas pelo regime militar, sob a vigência da  Constituição de 1967. Em resposta, o ministro do Exército Costa e Silva, então chefe do executivo, em face dos apelos de seus  colegas militares e do Conselho de Segurança Nacional,  classificou o pronunciamento como uma "provocação,  irresponsável e intolerável”. Imediatamente, ordenou à Câmara dos Deputados que cassasse o mandato do deputado Márcio  Moreira Alves.

Porém, no dia 12 de dezembro de 1968, a Câmara dos  Deputados negou a ordem vinda do executivo para cassar o mandato do deputado Márcio Moreira Alves, fazendo recair sobre ele o manto da imunidade e independência do Poder Legislativo. Mas já no dia seguinte, em clara retaliação ao Poder Legislativo, que desobedeceu ao seu comando, e, em supressão ao discurso do  deputado Márcio Moreira Alves, o Executivo baixou o quinto de uma série de decretos, o Ato Institucional Nº5. O mais duro golpe  já sofrido pelo Estado de Direito no Brasil.

O AI-5 entrou oficialmente em vigor em 13 de dezembro de 1968, sendo ele especialmente redigido pelo  Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva que, de forma  ditatorial, outorgava poderes ao Poder Executivo para adotar várias medidas sem apreciação judicial. O AI5 foi um instrumento  efetivo, que revogou vários artigos da Constituição de 67, dando  poderes absolutos ao regime militar. Sua primeira consequência contundente foi o fechamento do Congresso Nacional, por quase  um ano.

O AI5 passou a legitimar o governo federal a intervir nos estados e municípios, inclusive nas propriedades privadas; sob sua vigência, estava proibida qualquer tipo de manifestação  popular de caráter político. O AI5 autorizava, inclusive, o Poder Executivo a cassar mandatos de parlamentares ou aposentar compulsoriamente qualquer magistrado, independente de sua instância, punindo-os na sequência, com a suspensão de seus  direitos políticos, pelo período de 10 anos.

Além disso, outro ‘tapa na cara’ da sociedade foi a proibição do Habeas Corpus, contra as prisões decorrentes dos crimes contra a Segurança Nacional e contra a Economia Popular. Mas com a agravante de seu caráter subjetivo, bastando apenas  constar na capa do processo a acusação formal, contra qualquer  cidadão, por um desses crimes, que a prisão era legal.

Ao fim de dezembro de 1968, encontrava-se o Poder Legislativo mutilado, resultado da cassação de 11 dos seus  deputados federais, estando nesta lista o deputado Márcio Moreira Alves. Mas as cassações não pararam no Poder Legislativo, pois, em janeiro de 1969, o AI5 chegou às portas do Supremo Tribunal Federal.

Com isso, em 16 de Janeiro de 1969, três Ministros do  Supremo Tribunal Federal foram cassados a mando dos militares – Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. Estes  Ministros foram cassados por não tolerarem o fato de estar o chefe do executivo acima até da Constituição Federal , e por isso, foram considerados ameaças ao regime. Foi um duro golpe político no Poder Judiciário. 

A cassação de três Ministros da mais alta Corte de Justiça do Brasil, os Ministros Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, foi o mais duro golpe já sofrido pelo Poder Judiciário no Brasil, a viga mestra de toda a Justiça no país. Nestes tempos, o Brasil encontrava-se de joelhos perante os militares, mergulhado num mar de incertezas e perseguições.

Porém, bem durante esses tempos de ‘indireitos’ e opressões é que se destaca uma das mais emocionantes passagens  históricas do Judiciário no Brasil. Um ato de honra e coragem de um magistrado, que engrandece ainda mais a história do Poder Judiciário.

No dia 22 de Janeiro de 1969, o Desembargador Emílio de Farias, então Ex-Presidente do Tribunal de Justiça da Paraíba, em ato de bravura e destemor, fez um pronunciamento de protesto e defesa do Poder Judiciário, em face das cassações dos eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal - Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, que ocorreram pelo arbítrio revolucionário. Este levante ocorreu na sessão do pleno do Tribunal de Justiça da Paraíba e ecoou muito além de sua ata, chegando a ter repercussão nacional.

Em consequência deste ato, o Desembargador Emílio de Farias foi cassado e aposentado compulsoriamente pelo regime militar. Ficando, a partir deste momento, marcado para sempre na história do Judiciário brasileiro como detentor do título que mais o orgulharia em toda sua vida, o título de ter sido o único desembargador no Brasil a ser cassado pelo AI5, exatamente por defender o Poder Judiciário e sua independência.

A concretização de um mito.

Em resposta ao seu pronunciamento de apoio e defesa, o Desembargador Emílio de Farias recebeu várias manifestações de solidariedade e aplausos. Porém, convém aqui registrar, para aquilatar ainda mais a história do Judiciário brasileiro, a íntegra das cartas de agradecimento dos ministros punidos, que abaixo transcrevemos:

DO MINISTRO EVANDRO LINS E SILVA:

“Exmo. Sr. Desembargador Emílio de Farias.

Devo-lhe o meu reconhecimento pelas suas palavras proferidas no Tribunal de Justiça da Paraíba, durante sessão de 22 de janeiro do corrente ano. Embora delas estivesse tido notícia, só recentemente às li, na íntegra, porque um amigo comum fez o obséquio de entregar-me uma cópia das mesmas, com um cartão. Sabia V.Excia. os riscos que corria, mas, preferiu assumi-los a omitir-se. A consequência aí está como ato que também o atingiu. O efeito, porém, ficou marcado a sua posição de defensor do Estado de Direito, que se esteia, sobretudo, na independência do Poder Judiciário. Acredito, como V. Excia., nas lições da história: o arbítrio é efêmero; só o direito é eterno.

Além dos meus agradecimentos por suas generosas palavras, quero, já agora, expressar-lhe os meus sentimentos de pesar pelo ato que o afastou do exercício da judicatura, que V. Excia. Soube honrar, como magistrado probo e culto, segundo o testemunho que recolhi de vários paraibanos ilustres.

Seu patrício e admirador. Evandro Lins e Silva” 

DO MINISTRO VICTOR NUNES LEAL

“Brasília, 11 de março de 1969.

Ilustre Desembargador Emílio de Farias.

Sirvo-me do préstimo de uma amigo para acusar o recebimento – com bastante atraso - da cópia de seu pronunciamento do Tribunal  de Justiça da Paraíba, na sessão de 22 de janeiro último.

O dia em que recebi foi de grande conforto moral para mim e meus familiares. Se já o admirava por seus títulos pessoais e funcionais, junto agora a minha gratidão pela sensibilidade e destemor do seu gesto.

Atingido por um ato injusto, felizmente, sobra-me energia para o reinício da atividade profissional que exerci com entusiasmo durante cinco lustros e que só deixei pela honra de ingressar na magistratura. No exercício desse cargo, são procurei servir à justiça, de alma isenta, no limite das minhas deficiências.

Esperando poder renovar o meu agradecimento pessoalmente, na primeira oportunidade, formulo os melhores votos por sua felicidade pessoal e pela constância do prestígio de que desfruta nos meios jurídicos do país.

O patrício e admirador. Victor Nunes Leal”

DO MINISTRO HERMES LIMA

“Eminente Desembargador Emílio de Farias

Só ontem recebi, por estar fora do Rio, à cópia autêntica das palavras que pronunciou em sessão plena do Colendo tribunal paraibano e nas quais referiu com tanto destemor e com tanta generosidade aos atos que forçaram a aposentadoria minha e dos Ministros Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. O senhor não conhece a cor do medo e nisto é bem paraibano. È grato verificar como pela sua boca falou alto um sentimento de justiça, numa hora bem difícil. Agradeço-lhe vivamente a manifestação como que nos honrou, a mim e à meus colegas, e subscrevo-me com todo apreço.

Hermes Lima 

A queda do AI5, somente ocorreu oficialmente no dia 13 de agosto de 1979, mas, tão somente no dia 29 de agosto de 1979, foi que, enfim, foi publicada a Lei de Anistia, que tentou trazer de volta à efetividade dos direitos que foram injustamente suprimidos pela ditadura militar. Por isso, a história do Poder Judiciário nunca estará completa com a omissão dos fatos que levaram à sua mutilação nos anos mais obscuros do direito no Brasil.

Referências:
Celina D'Araújo, Maria. O AI-5. Fundação Getúlio Vargas 2009. Disponível em: fatosimagens/AI5 - acesso em 04 abril de 2011.
Folha de São Paulo. História do AI5, 2008. Disponível em - http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/ - acesso em 04 abril de 2011.
FARIAS DE LIMA, Margarita. Emílio de Farias (biografia): Glória que não se pode medir. João Pessoa, 2001

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Dr. Flávio Vieira de Farias - OAB/PR 57.311
Membro do Núcleo OAB Jovem de Londrina

Um comentário:

  1. Parabéns pelo artigo e por nos recordar de uma época triste de nosso país não tão distante. Fraterno Abraço.

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