terça-feira, 1 de setembro de 2015

ARTIGOS DOS MEMBROS DO NÚCLEO:"DO DIREITO À REPETIÇÃO DO INDÉBITO AO DEVER DE RESISTÊNCIA - uma breve análise sobre a inconstitucionalidade da majoração do IPVA pela Lei Nº 18371/2014"

Presenciamos, neste ano de 2015, o que talvez seja o momento mais crítico de nosso curto período democrático: a conjunção do exaurimento do modelo de desenvolvimento econômico -pautado na massificação do consumo, aumento da renda popular e produção e exportação de commodities– e político – pautado na desvirtuação do presidencialismo de coalizão com eminência do financiamento empresarial – e o fator condicionante da boa evolução desta crise passaria, justamente,pela reinvenção destas bases[1].

Neste complexo cenário em que se assiste, quase que diariamente, inúmeras notícias de corrupção atingirem, indistintamente, os principais segmentos políticos, e se passa a suportar o ônus da crise com o aumento de impostos, inflação e desemprego, não raro se deixa desacreditar nas Instituições Políticas, substituindo a figura política ora desacreditada por outra que se apresenta ética e probo, comumente a de agentes do judiciário que julgam aquela.

Com essa substituição - dos agentes políticos pelos judiciários - o cidadão perde a oportunidade de se identificar como membro de uma sociedade civil com poder de organização, clamor público e decisão política, e permanece na cômoda passividade, renovando a crença no outro, permitindo o contínuo ciclo de mais do mesmo. E, apar disto, ao se abordar qualquer tema de convergência entre estes poderes, faz-se necessário introduzir o alerta: há uma parte da vida política que é indelegável e essencial para nortear os fins estatais, e a isto se dá o nome de cidadania. Tornar o agente judiciário protagonista do cenário político é, antes de tudo, omitir-se frente a este dever.

No entanto, se a burocracia (ou tecnocracia jurídica) não é suficiente para remediar a insuficiência política, que somente se resolverá pela auto determinação e ocupação dos espaços públicos – observatórios sociais, conselhos municipais, partidos políticos - também é certo que a atividade governista é regida pelo império da lei, e, ao menos em questões pontuais, o cidadão consciente pode, sim, acionar o judiciário (e deve!), para utilizá-lo como instrumento de cidadania e resistência frente a arbitrariedades governamentais, exigindo o estrito cumprimento do interesse público.

Por amostragem, indica-se a contemporânea violação de direito cometida aos contribuintes paranaenses pela indevida cobrança majorada do IPVA, realizada pelo Governo do Paraná no final do antigo mandato (2014), que pouco foi resistida, ou mesmo debatida publicamente.

Em 5 de outubro de 2014 o atual Governador do Paraná, Beto Richa, foi reconduzido ao cargo discursando que o mandato que terminara fora utilizado para ajuste das contas públicas -supostamente desequilibradas por Governos anteriores - e que, portanto, sua recondução seria necessária para se dar continuidade ao projeto de governo, para “colher frutos de seu investimento”.

Contrariamente, após se consolidar vitorioso, encaminhou à ALEP – Assembleia Legislativa do Estado do Paraná - o projeto de lei que viria majorar o IPVA em 40%. Tal majoração não atingiria os proprietários de automóveis novos bem como sociedades empresariais proprietárias de quaisquer automóveis, ou seja, atingiria somente a pessoa física com automóvel cuja aquisição se deu nos anos anteriores, pelo que, já de antemão se frisa o tratamento discrepante entre os contribuintes, que fere os Princípios da Isonomia (art. 5º, caput[2], e 150, II[3], da CRFB) e da Capacidade Contributiva (art. 145 § 1° da CRFB)[4].

Ocorre que a referida lei foi aprovada pela ALEP e publicada em 16.12.2014, isto é, a dezesseis dias da data em que se formaria o dever tributário pelo antigo valor,prorrogando-se o critério temporal que ocorreria em 1º de janeiro de 2015 para 1º de abril de 2015, como se por esta manobra mirabolante se afastasse a regra da anterioridade nonagesimal (art. 150, III, “c” da CRFB)[5], que visa exatamente impedir a majoração surpresa do tributo por um período de noventa dias antecedentes ao início do ano, no caso do IPVA.

Ora, é flagrante que já a noventa dias do início do ano o contribuinte tinha adquirido seu direito de pagar pelo valor à época descrito em lei, e isto fica ainda mais evidente se analisarmos os motivos históricos que culminaram na criação da regra (Carvalho, Paulo de Barros. 2005. P. 160):

[...] A experiência brasileira, entretanto, demonstrou a incapacidade de esse princípio, sozinho, resguardar os administrados contra as providências fiscais tomadas ao final do exercício financeiro. Essa a razão pela qual o constituinte derivado, por meio da Emenda Constitucional n. 42, de 19 de dezembro de 2003, acrescentou a alínea c ao inciso III do art. 150 da Constituição, prescrevendo ser vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios "cobrar tributos antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b.

Posto isto, a majoração sobre o valor do IPVA só poderia ocorrer até 3 de outubro de 2014 - data anterior à eleição do Governo do Paraná. Após este período, a majoração somente seria válida para o exercício de 2016, e não para 2015, como exigida.

Percebe-se que a regra da anterioridade nonagesimal veio precisamente proibir que o Governo surpreendesse o contribuinte majorando ao final do exercício financeiro o tributo de caráter anual, como o é o IPVA (art. 2º[6] e 9º[7] LEI Nº 14.260/2003), com fato gerador continuado comumente previsto para 1º de janeiro, e a inovação pela prorrogação desta data não passa de uma aberração jurídica, pois destitui e no mesmo ato reinstitui o mesmo tributo de caráter anual com valor majorado, apenas cobrando-o em data posterior. Até porque, se a nova lei que majorou o tributo está condicionada a produzir efeitos após noventa dias de sua publicação, durante este período de vacância ter-se-ia consumado a ocorrência do fato gerador, em 1º de janeiro de 2015, com o direito de pagar pelo antigo valor, e a isto não se poderia retroagir (art. 150, III, “a” da CRFB)[8].

Se a análise da criativa manobra se apresenta densa frente aos por menores legislativos, seu princípio é bem mais simples, e a injustiça é clara a qualquer pessoa: o contribuinte não pode ser surpreendido às vésperas do pagamento do tributo com sua majoração, a bel prazer do Administrador Público. Portanto, deve acionar o judiciário pleiteando a restituição em dobro do valor indevidamente cobrado (Art. 940, CC)[9].

Assim o é, pois da mesma forma com que os políticos são eleitos para atuar em campo determinado pela Constituição, em especial, pela norma do art. 3º da CRFB[10], dando preferência à ideologia também delimitada pela via eleitoral, a forma de arrecadação para custeio deste projeto também não pode ser qualquer.

Neste aspecto,os advogados devem se prontificar ao patrocínio destas causas, quer pela justa restituição a que os contribuintes têm direito, quer pela importância desta resistência para o sucesso da anunciada reinvenção institucional, em que se espera, cada vez mais, a atuação cidadã positiva.Do contrário, caso olvida a cidadania – quer pelo aspecto direto quer pelo intermédio do judiciário - estar-se-ia conclamando ao arbítrio dos Governantes, como ovelhas que inertes aguardam dos lobos algo diferente que não o abate, em alusão ao poema de Hans Magnus Enzensberger[11], que se deixa à derradeira reflexão:

DEFESA DOS LOBOS CONTRA OS CORDEIROS

Querem que o abutre coma miosótis?
O que exigem do chacal,
do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
por que olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?

Quem costura a faixa de sangue
nas calças do general? Quem
trincha, diante do agiota, o capão?
Quem pendura orgulhoso, a cruz de lata
sobre o umbigo que ronca de fome? Quem
aceita a propina, a moeda de prata,
o centavo para calar-se? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
os aplaude, quem
lhes põe insígnias no peito, quem
é sequioso de mentiras?

Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade,
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
ainda é clemente demais para vocês.

Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês:
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre os lobos:
andam em alcatéias.

Louvados sejam os salteadores: vocês
convidam para o estupro
deitando-se no leito preguiçoso
da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.
    
Referências:
[1] UNGER, Mangabeira. Crítica ao pensamento jurídico brasileiro.Disponível em: . Acessado em: 30.08.2015; Mangabeira Unger e a reinvenção do Brasil. Disponível em: . Acessado em: 30.08.2015.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
[3]Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
[4] § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
[5] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e os Municípios: III - cobrar tributos: c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).
[6]Art. 2º - O IPVA tem como fato gerador a propriedade de veículo automotor e será devido anualmente.
[7]Art. 9º - O lançamento do IPVA dar-se-á anualmente por homologação ou de ofício.
[8] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: III - cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.
[9]Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.
[10]Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[11]Enzensberger, Hans Magnus. Eu falo dos que não falam (antologia), Editora Brasiliense, pag. 25, 1985.
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Dr. Clito Dante E. Juliani Grano - Advogado - OAB PR nº. 74 604 - Membro do Núcleo OAB Jovem de Londrina

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